Da teologia da misericórdia de Deus

08/11/2015 18:49

Da teologia da misericórdia de Deus

 

1)      O divino amor gratuito na criação

2)      Deus, em Jesus, procura, em extrema exinanição, o pecador

3)      O homem pode olhar, confiante, para o futuro:

- O que houve de grande em sua vida, foi graça.

- O que houve de culpa, pecado, está assumido na divina Misericórdia.

 

1)               O divino amor gratuito na criação

Deus não é uma eterna solidão, mas comunhão intrínseca trinitária. Nem Deus pode querer não ser trino. Eternamente surge na mente divina a consciência de Si mesmo, de Sua eterna santidade e divina perfeição. Este eterno pensamento, esta eterna visão de Si mesmo é o surgir da 2ª Pessoa divina, o Verbo. Tão perfeito é este surgimento, que é uma pessoa, o eterno Tu amado de Deus Pai, tão grande como o Pai. E a divina felicidade do Pai e do Filho não pode ser passageira, é o amor divino, tão absolutamente grande e eterno como o Pai, como o Filho. É a 3ª Pessoa em Deus, o Espírito de Amor. Deus não pode não se conhecer, não se amar. Por absoluta intrínseca necessidade do seu ser divino Ele é Trino.

Diante deste mistério divino devemos olhar para a criação, infinitamente distante de Deus e, todavia, privilegiadamente partícipe do mistério divino. Se Deus cria do nada algo que de por si não é, então esta criatura não é jamais um Tu necessário de Deus. Fica contingente, na margem do nada e, não obstante, trazendo em si a insaciável sede de Deus.

Qual então o sentido, a finalidade da criatura? O nada? A criatura deve ser importante em si? Autossuficiente? Então ela será satanás!

Aqui podemos adivinhar o grande mistério entre Deus e nós. O Verbo Eterno é Deus, igual ao Pai. A carta aos Hebreus criou um nome de absoluta beleza para designar a identidade entre o Pai e o Filho: “(O Verbo) é o resplendor da Glória do Pai” (Hb 1,3). Evidentemente, no espelho da divina autoconsciência, o resplendor da Luz é absolutamente igual à fonte da Luz.

Ora, Deus quer criar, no ápice de toda a criatura, o homem como imagem e semelhança de Si mesmo.

Portanto o homem, e de certa maneira, toda criatura reflete o próprio Deus, mas evidentemente não por uma necessidade intrínseca do ser divino, mas por livre e espontânea gratuidade do amor de Deus, que criou esta criatura. – Se não entendemos esta gratuidade do amor criador de Deus, jamais saberemos falar de misericórdia.

Com outras palavras, a glória de Deus que é igual no Pai e no Filho, Deus quer que esta mesma glória divina, por participação criatural, comece a brilhar, como divino esplendor em nós, sobre a nossa face.

Diz São Paulo: “Refletimos como num espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente, pela ação do Senhor, que é Espírito!” (2Cor 3,18). E Paulo insiste: “Deus disse: Do meio das trevas brilhe a luz!, foi ele mesmo quem reluziu em nossos corações, para fazer brilhar o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo” (2Cor 4,6).

O Concílio Vaticano I (1870), tematizou esta gratuidade sem igual: “Deus Onipotente... não o fez para aumentar Sua felicidade, nem para adquirir novas perfeições, mas somente para manifestar a sua perfeição” (DH 3025). É puro amor gratuito divino que ainda aumentou e radicalizou o inefável mistério da gratuidade. Quando estava perdida a inocência do paraíso, Deus criou algo maior ainda: pela graça de Jesus Cristo, Deus fez resplandecer em nós algo da Sua Glória. Nisto, a imagem de Deus em nós torna-se perfeita.

O amor de Deus, em sua radical e total gratuidade, chega ao ponto mais alto: diante da criatura que, amada e chamada para ser portadora da glória do Deus eterno, se opõe, se fecha, adorando – em suas paixões – deuses falsos, pecando contra o Deus três vezes santo. Então sua gratuidade amorosa torna-se misericórdia, amor que se inclina sobre o que já não merece nada. Em sua carta aos Romanos, São Paulo clama: “Eis aqui uma prova brilhante do amor de Deus por nós: quando éramos ainda pecadores, Cristo morreu por nós” (Rm 5,8). (18) “Tudo isso vem de Deus, que nos reconciliou consigo, por Cristo, e nos confiou o ministério desta reconciliação... (21) Aquele que não conheceu o pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nele nós nos tornássemos justiça de Deus” (2Cor 5,18-21; cf. Gal 4,4-7).

O próprio perdão não é fruto de nossa penitência, mas é oferta da inefável bondade misericordiosa de Deus, dando-nos a capacidade de arrepender-nos e de conformarmos nossa vida – mesmo por dolorosa mudança – aos seus planos sacrossantos.

 

2)                Deus, em Jesus, procura, em extrema exinanição, o pecador

 

a) Deus Pai é a fonte de toda a misericórdia, manifestada em Jesus. Como em uma grandiosa protofonia (abertura/ouverture) de sua missão salvadora, Jesus em Nazaré escolhe esta passagem do profeta Isaías: “O Espírito do senhor está sobre mim, porque me ungiu, e enviou-me para anunciar a boa nova aos pobres, para sarar os contritos de coração, para anunciar aos cativos a redenção, aos cegos a restauração da vista, pôr os cativos em liberdade e publicar um ano da graça do Senhor” (Lc 4,18s; cf. Is 61,1). Sim, os míseros, os desprotegidos, os desanimados, aqueles a quem a vida parece já nada oferecer, são os primeiros destinatários da misericórdia.

E Jesus define, diante de Nicodemos, a sua missão recebida do Pai: “Com efeito, de tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus não enviou o Filho ao mundo para condená-lo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3,16-17).

A história salvífica que Deus determinou sobre a humanidade, opera não só na comunidade, mas também em cada pessoa individualmente. “Não que nós sejamos capazes” de oferecer a Deus qualquer coisa de nossa parte para “recompensar” a divina santidade ofendida por nossos pecados; não que nós sejamos capazes de nos dirigir, por nós mesmos, para a luz, para a verdade, para a eterna santidade. É Deus, com sua graça misericordiosa, que nos precede, que evoca em nós o bem que então conseguimos fazer. Assim, Paulo define nossa situação absolutamente indigente: “Tal é a convicção que temos em Deus por Cristo. 5Não que sejamos capazes por nós mesmos de ter algum pensamento, como de nós mesmos. Nossa capacidade vem de Deus” (2Cor 3,4-5).

 

b) Jesus, Deus visível, é a misericórdia, o Reino da paz. O Evangelho de Marcos o introduz solenemente: “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: fazei penitência e crede no Evangelho” (Mc 1,15).

Com a mesma radicalidade, com a qual Jesus se apresenta em Nazaré (Lc 4,18s), Mateus, na resposta dada para João Batista, sintetiza a identidade de Jesus, em quem a misericórdia de Deus é o grande signo: “Ide e contai a João o que vistes e ouvistes: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam...” (Mt 11,4-6). Jesus compadece-se com o leproso (Mc 1,41), pára diante da mãe que perdeu seu único filho (Lc 7,13). Tem compaixão pelos numerosos enfermos (Mt 14,14), pelos cegos que lhe suplicam que tenha piedade deles (Mt 20,34). Em seu discurso sobre o juízo final, Jesus identifica-se com os famintos, os pobres, os perseguidos e miseráveis (Mt 25,31-46)[1].

A Cruz é a mais plena manifestação da misericórdia de Deus em Jesus Cristo. Ao ladrão perverso, culpado de hediondos crimes, mas agora arrependido e suplicando clemência, o Filho de Deus, sofrendo o mais tremendo martírio, declara: “Em verdade te digo, hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43).

Esta Cruz manifesta o mistério tenebroso do pecado do mundo e, ao mesmo tempo, mostra o mistério infinitamente maior da misericórdia divina. Quando os sacerdotes e escribas, culpados do crime hediondo contra o Deus encarnado, zombavam dele, Jesus, com santa justiça, poderia pronunciar sobre eles a divina vingança. Bem poderia repetir as palavras ameaçadoras do profeta Malaquias 3,19: “Eis que vem o dia, ardente como uma fornalha. E todos os soberbos, todos os que cometem o mal serão como a palha; este dia que vai vir os queimará – diz o Senhor dos exércitos – e nada ficará: nem raiz, nem ramos.”

Em lugar de tal justiça condenatória, Jesus, humilhado, martirizado, destruído, pronuncia, de modo inaudito, a misericórdia que transborda divinamente em seu coração: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem!” (Lc 23,34).

Nesta extrema aproximação a todos os pecadores, a todas as almas perdidas, Jesus é a presença visível e tocável do próprio Deus-Misericórdia. É a divina majestade que em Jesus passou pela exinanição, para assim mostrar ao pecador sem esperança o Pai de toda misericórdia: “Quem me vê, vê o Pai!!” (Jo 14,9).

“Cristo remiu-nos da maldição da lei, fazendo-se por nós maldição, pois está escrito: Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro (Dt 21,23)” (Gal 3,13).

 “Pela hora nona, Jesus deu um grande grito: “Eli, Eli, lemmá sabachtáni? – Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste? (Mt 27,46)[2]. É como se Ele, o Deus Salvador, quisesse ir até à solidão, ao abandono do pecador. Ele quer tomar sobre si o último desespero do pecador longínquo de Deus.

A gratuidade do amor criador e redentor de Deus, diante da culpa, da perdição do homem pecador, inclinou-se sobre a criatura, chamando-a para a divina comunhão. Desta criatura infiel, presa nos enganos de satanás e no “triunfo” dos pecados, Jesus tomou sobre si o peso do pecado, carregando a “ovelha” ferida até o aprisco feliz da salvação. “Remiu-nos da maldição..., fazendo-se por nós maldição” (Gal 3,13). Nada o pecador podia oferecer em troca. Só podia receber o perdão em sua alma ferida e arrependida. A única coisa que Deus, em Cristo, espera de nós é nosso total desejo de encontrar o divino Salvador, como simultaneamente nosso incondicional esforço de odiar o pecado, para podermos de verdade amar a santidade d’ELE, de amar e adorar a Sua santidade que, gratuitamente, recomeça a estar em nós. A inclinação desta inefável divina gratuidade sobre o pecador, para reconduzi-lo – mesmo em penosa luta – à divina semelhança, é a demonstração mais eloqüente, mais absoluta, da divina misericórdia. Esta penosa luta de readquirir, na divina graça, a santidade, não acontece sem ser simultaneamente o zelo de corrigir a ofensa cometida ao próximo e/ou à comunidade humana.

 

 

3) Em Cristo, podemos olhar, confiantes, para o futuro (eterno):

- Por tudo o que houve e há de grande e de santo em nossa vida, queremos, agradecidos, adorar Deus, porque é sua Graça que em nossa fraqueza operou sinais de divina grandeza. Só na eternidade saberemos adorar o divino amor que, na graça santa, nos guardou de pecado maior.

- Por tudo que foi pecado, traição ou sedução e destruição em uma vida, corramos à Sua misericórdia que sempre nos espera. Eternamente poderemos cantar o divino louvor, porque é também sobre cada um de nós que o Filho de Deus rezou: “Pai, perdoa a eles!”

Em Jesus, a misericórdia divina do Pai está visivelmente presente. Ele ilumina as trevas do pecado para perdoar, (a mulher pecadora que primeiro só tinha lágrimas a oferecer) (Lc 7,36-50; aqui 38). Ele cura doentes e ordena ao morto: “Jovem... levanta-te”, e “o entrega à sua mãe” (Lc 7,11-17). Ele saberá dar vida, onde houvesse dias ou horas mortos, anos perdidos de nossas vidas. – Mas é Ele também que, com inefável afeto, sabe guardar em muitos a santidade batismal ou reformá-la até à perfeição. A divina misericórdia guarda e sempre restaura em nós a Sua imagem! Ninguém está excluído de seu chamamento amoroso:

 “Vinde a mim, vós todos que estais aflitos sob o fardo, e eu vos aliviarei. Tomai meu jugo sobre vós e recebei minha doutrina, porque eu sou manso e humilde de coração e achareis o repouso para as vossas almas. Porque meu jugo é suave e meu peso é leve” (Mt 11,28-30)!

A imagem bíblica, que encontramos em Daniel, resume origem e meta divinas da misericórdia, mas também, na pessoa misericordiosamente redimida, a dor purificadora da volta a Deus:

Dan 3,29-43:

O pecado: 29 “Pecamos, erramos afastando-nos de vós; em tudo agimos mal. 30 Não obedecemos a vossos preceitos, não os pusemos em prática, não observamos as leis que nos destes para nossa felicidade...”

O juizo e punição: (31c) “Foi um julgamento verdadeiro que  fizestes, 32 entregastes-nos nas mãos de inimigos injustos, de ímpios enfurecidos, às mãos de um rei, o mais iníquo e o mais perverso de toda a terra.

Arrependimento-conversão: 33Agora não ousamos nem mesmo abrir a boca: vergonha e ignomínia para vossos servos e a nós que vos adoramos. (39) Com a alma quebrantada e o espírito humilhado  possamos encontrar a acolhida, tal como se viéssemos com milhares de holocaustos...”

O perdão que nos é dado é manifestação da glória do Senhor: 41 “É de todo nosso coração que nós vos seguimos agora, que nós vos reverenciamos, que buscamos vossa face. 42 Não nos confundais; tratai-nos com vossa habitual doçura e com todas as riquezas de vossa misericórdia. (43) Livra-nos segundo as vossas maravilhas e dai glória ao vosso nome, ó Senhor!”

 

Durante toda a minha existência sacerdotal, quero, cheio de esperança e de júbilo, guardar no segredo da consciência o que a Igreja nos manda rezar nas primeiras Vésperas do primeiro domingo do Breviário. Com esta oração desejo concluir – na graça de Deus – a minha vida, para então para sempre ser, em Cristo e com Cristo, um louvor ao Pai da misericórdia. Concluamos também hoje com esta oração do Salmo:

Senhor, eu clamo por vós, socorrei-me;

Quando eu clamo, escutai minha voz!.

Minha oração suba a vós como incenso.

E minhas mãos, como oferta da tarde!” (S 141/140,2).

 

Rio, 01 10 2015.

 

+ Karl Josef Romer



[1] Cf. Walter Cardeal Kasper, A misericórdia, condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã, Loyola 2015, pp. 86ss.

[2] Hans Urs Von Balthasar, Mysterium Paschale, 146s. 227-253; C. Pozo, Redención y reparación: Cristologia en la perspectiva del Corazón de Jesús, Bogotá 1982, 608ss; Ziegenaus, Kath. Dogmatik Bd. IV,316-327.