Imagens religiosas

24/09/2011 17:33

A veneração das imagens

O doloroso conflito iconoclasta nos séculos 8º e 9º devia-se essencialmente a um zelo mal orientado de tendência fanática e a uma falta de clareza teológica em certas regiões do Oriente, como também ao pouco contato com Roma, centro da comunhão eclesial. Duas líneas de reflexão devem ser seguidas para esclarecer o tema: - A absoluta impossibilidade para a criatura de ver a face de Deus. - E de outro lado o significado da imagem religiosa.

Num momento abençoado, Moisés dirigiu a Deus o pedido: “Mostrai-me a vossa glória” (Ex 33,18.20). E a resposta de Deus foi taxativa: “Não poderás ver a minha face; pois o homem não me poderia ver e continuar a viver”.

Pretender ver a face, a santa identidade de Deus, significa esquecer o absoluto abismo, a intransponível diferença entre o Criador e a criatura.

No NT encontramos um texto que nos ajuda a penetrar algo mais neste mistério. Lemos na primeira carta de São João: “Seremos semelhantes a Deus, porquanto o veremos como ele é” (1Jo 3,2). O poder ver Deus e o ser como ele se correspondem por uma necessidade intrínseca. Na transfiguração de Cristo, embora ele tivesse escolhido os três apóstolos mais próximos, mais íntimos, estes eram incapazes de vê-lo como ele é, mas “caíram com a face por terra”, porque ainda não tinham alcançado suficientemente o “ser semelhantes a ele” (cf. Mt 17,6).

Ver Deus será a última e extrema graça para a criatura, prometida para a plenitude na “casa do Pai”. 

Além do mais, a proibição de fazer imagens de Deus, para evitar qualquer blasfema identificação do Deus Altíssimo com a matéria de simulacros, não excluía a possibilidade de fazer outras imagens sacras que expressassem a veneração do inefável nome de Deus e ilustrassem e educassem a atitude de fé e de piedade do povo em adoração diante do Senhor três vezes santo. Assim, “no santuário do templo, no Santo dos Santos, a arca da aliança estava colocada debaixo das asas dos querubins”, feitos de madeira de oliveira, revestidos de ouro (1Reis 8,6s; 6,23-28). Todo um esplendor artístico circundava o lugar da presença do Senhor Deus. Salomão “mandou esculpir em relevo em todas as paredes da casa, ao redor no santuário como no templo, querubins, palmas e flores abertas” (1Reis 6,29). Tudo convidava a contemplar o Deus da aliança como Deus da vida, da santidade e da adoração. Tudo convidava os presentes a imitarem os gestos dos santos Querubins que vivem adorando a Deus. Destarte, no dia da grande inauguração da glória do templo, Salomão, “ajoelhado com as mãos levantadas para o céu” (1Reis 8,22.54), em seu nome e em nome de toda a imensa assembléia que tinha concorrido de todo o Israel (8,65), ofertava a Deus o sacrifício de seus lábios, o louvor, a adoração e as súplicas.

A solenidade da auto-revelação de Deus ao dar aos homens os mandamentos, não podia deixar de conter a proibição de imagens do Santíssimo (cf. Ex 20,4-5). A proibição de simulacros de Deus tem suas razões muito realísticas. O culto das figuras dos deuses pagãos exigia uma tomada de posição drástica.

Nas religiões circunvizinhas, as imagens de ouro, de pedra, ou de qualquer outro material, materializavam, coisificavam a divindade, reduzindo-a a “objeto” direto, e adorando-a em uma materialidade concreta.

Não atingimos a mais profunda verdade do AT se apenas insistimos na proibição de imagens. O mais admirável é que o Antigo Testamento, ao se rebelar contra tal degradação do divino, proibindo imagens de Deus, nunca deixou de procurar ansiosamente a face santa de Deus. A face de Deus que é procurada não só não permite nenhuma materialização de Deus, mas exige do homem a mais sublime elevação da mente. É com júbilo que se deve procurar a face de Deus S. 105 (104),1-4. E o Salmo 24 (23) é ainda mais explícito. Quem quer aproximar-se de Deus e “procurar a face do Deus de Jacó” deve ter as “mãos limpas e puro o coração”, para ser “digno de subir ao monte do Senhor, ou de permanecer no seu lugar santo” (24,2-6). Esta busca da face de Deus não tem nada em comum com a materialização do divino nas imagens pagãs.

 

O fato mais decisivo, nesta busca da face de Deus é a própria intervenção de Deus. Ele toma a iniciativa e dá ao mundo a Sua mais perfeita imagem, e esta imagem é de carne e osso, é o seu eterno Filho, feito homem. Este homem, Jesus, dirá: “Quem me viu, viu o Pai” (Jo 14,9). Diante desta revelação de Jesus dividem-se as mentes. Uns não conseguiam crer: “Nós queremos-te apedrejar por uma blasfêmia, porque, sendo homem, te fazes Deus” (Jo 10,33). E a Igreja dos apóstolos, porém, confessará: “Ninguém jamais viu a Deus. O Filho único, que está no seio do Pai, foi quem o revelou” (Jo 1,18). Paulo escreve o grande hino ao Filho de Deus, feito “imagem visível do Deus invisível” (Col 1,15). Nesta visibilização de Deus está toda a nossa redenção (ibid. 1,15-20).

De outro lado, em toda a história da arte cristã, desde a sua origem, a imagem jamais quer ser um retrato ou uma imitação de Deus ou de uma pessoa santa. Embora Deus tenha uma face visível em Jesus Cristo, a arte, por sua sublime discrição, pelo véu da beleza, quer insinuar o que transcende todo conceito humano e toda objetivação. Neste sentido, a imagem não é jamais um trazer o divino para esta terra, mas é um convite à nossa elevação e adoração ao Deus que não é “retratado” pela imagem, mas é proclamado três vezes santo.

As imagens do Bom Pastor, desenhadas nas catacumbas do 1º ou 2º século, não são nenhuma materialização de Deus ou de Jesus Cristo, mas são proclamação da fé viva e convite à oração para exaltar a divina misericórdia que em seu ombro carrega para a casa do Pai a criatura ferida e culpada, perdoando-a e santificando-a.

As imagens, assim, não são apenas a Bíblia dos analfabetos, mas são ao mesmo tempo a convocação para a adoração sem fim da divina face que Deus nos revelou nas obras da redenção de seu Filho bem-amado.

A mais velha imagem de Maria, mãe de Jesus, na catacumba de Santa Priscila mostra a mãe com o Filho no braço. Esta imagem nem degrada o divino, nem diviniza a criatura, mas exalta simplesmente a mais pura e fundamental obra de Deus. Uma de nós, uma jovem judia, Maria foi eleita por Deus para ser mãe do Filho do Altíssimo. Nesta imagem se mostra tanto a misericordiosa condescendência de Deus, tomando vida humana no seio de uma virgem, tornando-se em tudo igual a nós, fora o pecado (Heb 4,15), mas se mostra também a inefável elevação da criatura, chamada ao perdão, à paz com Deus, a uma nova e eterna comunhão com o céu. Em Maria, eleita por Deus como “cheia de graça”, encantados, deciframos o novo destino que, em Jesus, é dado a todo ser humano. Esta imagem não só não é uma degradação do divino, mas é proclamação dos desígnios de Deus, é adoração do Deus “que tanto amou o mundo que lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). 

 

Salomão sabe que a realidade da presença de Deus neste lugar consagrado jamais pode limitar ou circunscrever a eterna imensidão de Deus. Por mais que no templo se possa adorar, Deus é maior do que o templo. Ou como a Igreja dirá: os sacramentos são presença real de Deus, mas Deus é infinitamente maior. Assim, Salomão, feliz por ter construído “um lugar onde o Senhor habitará para sempre” (1 Reis 8,13), confessa: “Se o céu e os céus dos céus não vos podem conter quanto menos esta casa que edifiquei!” (1Reis 8,27). Assim, a adoração diante da cruz ou diante de um objeto sagrado jamais se reduz a este objeto material, mas, exaltando aquilo que este objeto nos lembra das maravilhas operadas por Deus, o orante inclina-se diante da própria majestade divina.