O Coração de Jesus
1. Nota litúrgica (prévia)
Sendo o Mistério da Paixão do Deus-Homem rico demais para ser absorvido numa semana, a sensibilidade da Igreja, além de instituir o ciclo hebdomadário da celebração pascal, tomou uns aspectos mais fortes ou mais eloqüentes deste mesmo (e único) mistério litúrgico para explicitá-los e evidenciá-los perante os fiéis (p.ex. o Precioso Sangue, Cristo Rei, Coração de Jesus).
Tal explicação depende essencialmente do contexto cultural de cada época. Sendo o pietismo mais voltado para a contemplação estática do mistério do Senhor (consolar o Coração de Jesus, dando satisfação expiatória), o homem de hoje, com seu personalismo, precisa de formas condizentes com sua experiência subjetiva.
O Culto ao Coração de Jesus, na sua forma autêntica, é de grande valor hoje para cristãos espiritualmente maduros.
2. Introdução antropológica
a) O uso humano e o uso técnico de palavras
- Há palavras claras e diáfanas, graças a sua total superficialidade (“diáfanas”, neste caso, significa que trans-parece o nada). Ex. Assim seria a afirmação simplista: O teólogo tem o direito de questionar a fé; o pastor deve administrar a Igreja.
- Há palavras obscuras, não por defeito, mas por sua profundidade, seu conteúdo de muitas dimensões. Ex.: vida, generosidade, amor, sacrifício, pessoa, vocação etc.
- Há palavras cujo uso original é parte de uma experiência quase inefável da própria profundidade do ser humano em abertura para o mistério.
De tais palavras enriquecidas por experiências vitais derivaram-se significados exatos, limitantes, guardando-se apenas um significado parcial da totalidade daquele valor humano. Ex. “água”: é algo que simboliza vida, força purificadora, algo que renova as forças de quem tem sede; é cristalina e diáfana, guardando em si, portanto, a capacidade de alentar a vida de todos os seres. São Francisco, ao cantar a água, indica toda essa riqueza e beleza. O Salmista diz: “minha alma tem sede de Deus … pelas águas vivas anseia com ardor”. O Físico, no entanto, reduz toda essa experiência rica humana a um aspecto funcional (dentro da relacionabilidade com os outros átomos): H2O.
b) A palavra “coração”
“Coração” é uma palavra que, antes de indicar um músculo importante, significa toda uma experiência humana de riqueza inefável. As manifestações de bondade, fortaleza, perdão, como as de ódio, covardia, traição, não são boas ou más como tais, mas exatamente enquanto expressão de uma raiz inacessível, de uma radical unidade (realizada ou corrompida). Este centro profundo, mistério da nossa consciência, é mais do que aquilo que a sociologia entende por pessoa, e chama-se em inúmeras línguas (todas?) o coração.
“O coração” não é idêntico ao amor; pode-se depravar em ódio.
c) Enuncia-se o indizível segredo da pessoa (o seu “Coração”) no relacionamento:
- com o mistério pascal, para o qual, no fundo da minha existência, todo o meu ser se abre ou se nega;
- com o mistério do tu;
- com Deus, razão e garantia deste mistério.
d) O homem é um todo.
Rahner compara alma e corpo a dois “estados físicos” da mesma realidade.
Como, por exemplo: o gesto de bondade, nem é só intenção espiritual, nem apenas exercício dos músculos do meu braço, e a face nem são só as feições, traços e rugas físicas, nem só espírito, mas o caráter feito visível,
Assim, o coração não é só o centro vital físico, cuja destruição significa morte, mas indica antes de tudo a fonte da vida, da bondade (ou maldade), da pessoa humana. Por isso, o coração, “centro” físico, é símbolo do Coração: Mistério-Pessoa.
3. “Eis o coração”
a) História salvífica
Enquanto o coração humano pode ser bom ou mau, em Cristo manifestou-se o sentido total do ser-homem: bondade, misericórdia, santidade (intimidade com Deus).
b) Teologia bíblica
O amor impotente de sua solidariedade com os homens, quisera dar aos outros o supremo sentido do Seu amor, tendo-se frustrado (símbolo disso: Jesus chora sobre Jerusalém – Lc 19,41), não desiste de sua bondade.
Ainda na irrealização da sua abertura de amor para com todos, na quase total frustração das suas aspirações humanas-comunitárias, ele fica fiel ao mistério amado, não só nos outros, mas em Si mesmo, entrega-se ao Absoluto, confiando somente na infinita bondade dAquele que podia ainda dar um sentido divino-eterno a seu amor de solidariedade humana, frustrado e ultrajado. Ele torna-se, sem reserva, sem restrição: holocausto a Deus.
c) Reflexão
Nestes dois momentos do amor (3b) está a “totius religionis summa” (Pio XI).
Só na entrega de confiança ilimitada ao Pai é possível persistir a amar os homens: Pai, perdoa a eles!
Do outro lado, é o amor ao Pai que O remete ao amor a todos aqueles que pelo Pai são amados e vocacionados (Ef 1,4; Rm 8,31-34).
Jesus é essencialmente o holocausto que Deus se preparou para nossa salvação.
A atitude íntima de Jesus é a obediência de amor.
A veneração ao Coração de Jesus quer, crendo e adorando, olhar para aquele fundo maravilhoso da sua Pessoa, do qual não pode surgir nem o erro, nem o pecado, nem ódio, mas somente amor por nós, em obediência-amor ao Pai.
A palavra de Pilatos tem totalmente sentido para o cristão que crê: “Eis o homem” (Jo 19,5).
4. O culto ao Coração de Jesus
Supomos que cada fase da vida, como cada grau de maturidade espiritual queira (e deva) expressar as mesmas verdades fundamentais em formas diversas. Qual a forma de expressão para um cristão consciente e maduro?
- Dentro do mundo secularizado, não existem mais os mitos dos recintos sagrados. O único lugar que não pode se dessacralizar é o homem em sua insubstituível dignidade e vocação para o Absoluto.
- O “Coração de Jesus” mostra-nos, no centro de nossa Fé, o personalismo mais radical em sua opção insubstituível. O termo deste culto é sempre a Pessoa toda de Jesus.
- Se o cristão tem o dever de fazer sua a obra redentora e expiatória do Cristo (Cl 1,24), então o fundo de nosso ser deve-se assemelhar ao íntimo mistério da Sua vida; pode nosso coração assemelhar-se ao Seu coração?
- Isto tem então um significado bem determinado: participar da sorte do seu amor que é a superação da frustração do amor de fraternidade e solidariedade, na entrega de confiança ao Pai: participar da expiação pelo mundo, tornando-nos holocausto-amor para Deus.
- Esta configuração com Ele cria em nós três atitudes:
- Intimidade: viver a partir de Deus-Mistério em nós e nos outros.
- Crer no amor de Deus, mesmo onde Ele é o Juiz justo, Santo e inexorável.
- Participar da expiação pela Igreja (Cl 1,24; cf. 4c).
- Toda interioridade de nosso “crer no amor” só será fecunda se ela assume a solidariedade ao mundo e suporta – como forma de holocausto – a impotência histórica do amor ao próximo, fazendo-se hóstia que é a parte da HÓSTIA JESUS; isto é, adorando Deus com Cristo, por Cristo e em Cristo.
- Tal intimidade e ardor no relacionamento com Jesus supõe, além de uma viva sensibilidade pela Igreja, uma discrição espiritual e interioridade sagrada.
- São João, na sua carta e no seu Evangelho, desenhou a verdadeira imagem do Coração de Jesus (1Jo 3,20): “Caso nossa consciência nos censure, Deus é maior do que nossa consciência e conhece todas as coisas” (cf. Jo 21,15ss).
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Observação: Estas reflexões podem ser aprofundadas em K. Rahner, Escritos Teológicos, III, Cap. 5; Kittel, ThWNT, III, 60ss.