O fundamento da consagração

08/11/2015 18:51

FUNDAMENTO DE TODA VIDA CONSAGRADA

Dia de Espiritualidade – Colégio Santa Marcelina 2015 9 20

 

Anterior e superior à escolha de tal ou qual Congregação é a incondicional opção pelo Cristo Jesus e seu Reino.

Recordação prévia: São Francisco, antes de optar pela forma de vida, encontrou – diante da futilidade da vida de negócios e namoro fácil na companhia de colegas – o Cristo crucificado que lhe falou: “Reconstrói a minha Igreja!”. E Santo Inácio de Loyola, antes de optar pela “Companhia de Jesus”, descobriu, gravemente ferido e prostrado na cama, o absurdo das aspirações humanas (poder, orgulho, amor sensual) e a incomparável luz da palavra e da pessoa de Jesus na Bíblia.

 

1) O exemplo de dois enormes profetas: Elias e Eliseu

A experiência de Elias 1Rs 19,9-16. 19-21: (Elias, perseguido pelo rei e a Regina) 4“Sentou-se debaixo de um junípero e desejou a morte: Basta, Senhor, disse ele; tirai-me a vida, porque não sou melhor do que meus pais. 5 Deitou-se por terra, e adormeceu debaixo do junípero. Mas eis que um anjo tocou-o, e disse: Levanta-te e come... porque tens um longo caminho a percorrer. 8 Elias levantou-se, comeu e bebeu e, com o vigor daquela comida, andou quarenta dias e quarenta noites, até Horeb, a montanha de Deus. 9 Chegando ali, passou a noite numa caverna. Então a palavra do Senhor foi-lhe dirigida: Que fazes aqui, Elias? 10 Ele respondeu: Estou devorado de zelo pelo Senhor, o Deus dos exércitos. Porque os israelitas abandonaram a vossa aliança, derrubaram os vossos altares e passaram os vossos profetas ao fio da espada. Só eu fiquei, e querem tirar-me a vida. 11 O Senhor desse-lhe: Sai e conserva-te em cima do monte na presença do Senhor: ele vai passar. Nesse momento passou diante do Senhor um vento impetuoso e violento, que fendia as montanhas e quebrava os rochedos; mas o Senhor não estava naquele vento. Depois do vento, a terra tremeu; mas o Senhor não estava no tremor de terra. 12 Passado o tremor de terra, acendeu-se um fogo; mas o Senhor não estava no fogo. Depois do fogo ouviu-se o murmúrio de uma brisa ligeira. 13 Tendo Elias ouvido isso, cobriu o rosto com o manto, saiu e pôs-se à entrada da caverna. Uma voz disse-lhe: Que fazes aqui, Elias? 14 Ele respondeu: Consumo-me de zelo pelo Senhor, Deus dos exércitos... Só eu fiquei, e agora querem tirar-me a vida. 15 O Senhor disse-lhe: Retoma o caminho do deserto, na direção de Damasco. Ali chegando, ungirás Hazael como rei da Síria, 16 Jeú, filho de Namsi, como rei de Israel, e Eliseu, filho de Safat, de Abel-Meula, como profeta em teu lugar.

Vocação de Eliseu

19 “Elias, partindo dali, encontrou Eliseu, filho de Safat, lavrando com doze juntas de bois diante dele; ele mesmo conduzia a duodécima junta. Elias aproximou-se e jogou o seu manto sobre ele. 20 Eliseu, deixando imediatamente os seus bois, correu atrás de Elias, e disse: Deixa-me ir beijar meu pai e minha mãe, depois te seguirei. Vai, disse-lhe Elias, mas volta, porque sabes o que te fiz. 21 Eliseu, deixando Elias, tomou uma junta de bois e imolou-os. Com a lenha do arado cozeu as carnes e deu-as a comer à sua gente. Em seguida partiu e seguiu Elias, para servi-lo”.

Vejamos a sensibilidade de Elias, percebendo a divina presença no murmúrio da discreta brisa. E como, caminhando, se refizeram suas forças. Sua alma arde de novo de zelo pela causa de Deus. – E Eliseu, tocado pelo manto do profeta, sabe-se chamado. Seus gestos são totais: Mata dois bois, quebra e queima o arado, faz o sacrifício com aquilo que até então era sua riqueza. Vai aos pais, para seguir o profeta definitivamente.

 

2) Jesus vive de forma inefável a radical pertença ao Pai e à sua missão

Em sua Paixão, Jesus, Deus em Jesus, vai até a última degradação, onde sempre a “ovelha” pudesse estar perdida, presa nos espinhos dos enganos do pecado e desesperada, condenada a perecer na solidão, na dor, na morte sem esperança, na noite sem Deus. Não é por isso que grandes pensadores cristãos, como por exemplo, Hans Urs von Balthasar, amigo ilustre de  Cardeal Ratzinger, e outros, opinam que o último clamor de Jesus na Cruz foi devido à sua solidariedade com a noite do pecado[1]. Jesus sabe que as primeiras palavras do Salmo 22 (21) são usadas pelos piedosos judeus para expressar a angústia de extrema penúria e indigência. E Mateus, assim parece, quer realçar esta incrível experiência de Jesus: “Lá pela hora nona, Jesus deu um grande grito: “Eli, Eli, lemmá sabachtáni? – Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” (Mt 27,46). É como se Ele, o Deus Salvador, quisesse e precisasse experimentar a solidão, o abandono do pecador. Ele quer tomar sobre si o último desespero do homem que se afastou de Deus. Valeria a pena relermos o Salmo 22 (21), que começa com este grito, juntando ainda outras lamentações. É verdade que, na segunda parte do Salmo (a partir do versículo 20), o orador desesperado procura um raio de nova esperança: “Vós, Senhor, não vos afasteis de mim; ó meu auxílio, bem depressa me ajudai” (20). “Então, anunciarei vosso nome a meus irmãos, e vos louvarei no meio da assembléia” (23; cf. 31!).

Diante da Cruz, Jesus suplica: “Adiantou-se um pouco e, prostrando-se com a face por terra, assim rezou: Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice! Todavia não se faça o que eu quero, mas sim o que tu queres.” – Seria justo que o Filho de Deus crucificado ameaçasse com o divino “Ai de vós!” os facínoras e algozes que eliminam desta terra o santo de Deus. Bem poderia lançar sobre os que queriam destruir toda a sua obra, a ameaça do profeta: “O dia do Senhor será ardente como uma fornalha. O dia do Senhor queimará como palha os que cometem o crime!” (Malaquias 3,19). Se ele dissesse esta palavra justa, tantas esperanças seriam apagadas para sempre. E ele, nos tormentos mais inimagináveis, clama a Deus: “Pai, Pai, perdoa a eles! Não sabem o que fazem!”

São Paulo diz sobre o mistério da Cruz: “Cristo remiu-nos da maldição da lei, fazendo-se por nós maldição, pois está escrito: Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro (Dt 21,23). 14 Assim a bênção de Abraão se estende aos gentios, em Cristo Jesus, e pela fé recebemos o Espírito prometido” (Gal 3,13s).

 

3) Jesus chama-nos a cada um, a cada uma: com irrestrita radicalidade do divino amor

Observação prévia: Quem não tiver descoberto o Cristo em sua divina exigência, quem não tiver optado por este Cristo Jesus “que nos amou e se entregou por mim” (Gl 2,20), sofrerá com as dificuldades pequenas e cotidianas. Estas se tornarão grandes, por não existir a grande e incondicional opção por Jesus Cristo. A vocação para “tal Congregação”, que deveria ser a aplicação e a forma concreta de se viver a grande opção por Jesus, começa a vacilar.

 

Mt 16,21-23: 21 “Desde então, Jesus começou a manifestar a seus discípulos que precisava ir a Jerusalém e sofrer muito da parte dos anciãos, dos príncipes dos sacerdotes e dos escribas; seria morto e ressuscitaria ao terceiro dia. 22 Pedro então começou a interpelá-lo e protestar nestes termos: Que Deus não permita isto, Senhor! Isto não te acontecerá! 23 Mas Jesus, voltando-se para ele, disse-lhe: Afasta-te, Satanás! Tu és para mim um escândalo; teus pensamentos não são de Deus, mas dos homens!”

Logo em seguida, Jesus descreve o íntimo cerne do seguimento a Ele: “Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me. 25 Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas aquele que tiver sacrificado a sua vida por minha causa, recobrá-la-á... 27 Porque o Filho do Homem há de vir na glória de seu Pai com seus anjos, e então recompensará a cada um segundo suas obras” (Mt 16,24s.27).

Na vocação colocam-se duas perguntas: Quem nos chama? Para que Ele nos chama? É o Redentor do mundo que nos chama, não em primeiro lugar para tal ou qual Congregação, mas em primeiro lugar para Si mesmo! Enquanto nos sentimos atraídos para um tipo histórico de seguimento, Ele nos chama para uma participação em Seu múnus de Redentor, que se realiza na última entrega ao Pai e entrega pelo mundo perdido. – A segunda pergunta: Para que é que Ele nos chama? Existe uma bem concreta e incisiva resposta dada por Jesus. Repito: logo após o seu primeiro anúncio da sua Paixão, ele descreve o íntimo cerne da nossa vocação: “Em seguida, Jesus disse a seus discípulos: Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me. Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas aquele que tiver sacrificado a sua vida por minha causa, recobrá-la-á. Que servirá a um homem ganhar o mundo inteiro, se vem a prejudicar a sua vida? Ou que dará um homem em troca de sua vida?” (Mt 16,24-26; cf. Mc 8,34).

E Paulo, após sua dolorosa conversão, que inverteu todos os critérios de sua vida, e após as longas e múltiplas adversidades suportadas (cf. 2Cor 11,23-33), ele, por assim dizer, dá-nos a beleza de sua (última) renovação da pertença a Cristo: “Se torno a edificar o que destruí, confesso-me transgressor. Na realidade, pela fé eu morri para a lei, a fim de viver para Deus. Estou pregado à cruz de Cristo. 20 Eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que vive em mim. A minha vida presente, na carne, eu a vivo na fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gal 2,18-20).

São Paulo chega ao ponto de querer que nós experimentássemos sua experiência com Jesus Cristo. “Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo!” 1Cor 11,1).

Se lêssemos sua dramática “autobiografia”, sintetizada em 2Cor 11,23-33, começaríamos a entender o seu ser imitador de Cristo:

Sinto vergonha de o dizer; temos mostrado demasiada fraqueza... Entretanto, de tudo aquilo de que outrem se ufana (falo como um insensato), disto também eu me ufano. 22 São hebreus? Também eu. São israelitas? Também eu. 23 São ministros de Cristo? Falo como menos sábio: eu, ainda mais. Muito mais pelos trabalhos, muito mais pelos cárceres, pelos açoites sem medida. Muitas vezes vi a morte de perto. 24 Cinco vezes recebi dos judeus os quarenta açoites menos um. 25 Três vezes fui flagelado com varas. Uma vez apedrejado. Três vezes naufraguei, uma noite e um dia passei no abismo. 26 Viagens sem conta, exposto a perigos nos rios, perigos de salteadores, perigos da parte de meus concidadãos, perigos da parte dos pagãos, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar, perigos entre falsos irmãos! 27 Trabalhos e fadigas, repetidas vigílias, com fome e sede, freqüentes jejuns, frio e nudez! 28 Além de outras coisas, a minha preocupação cotidiana, a solicitude por todas as igrejas! 29 Quem é fraco, que eu não seja fraco? Quem sofre escândalo, que eu não me consuma de dor? 30 Se for preciso que a gente se glorie, eu me gloriarei na minha fraqueza. 31 Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que é bendito pelos séculos, sabe que não minto. 32 Em Damasco, o governador do rei Aretas mandou guardar a cidade dos damascenos para me prender. 33 Mas, dentro de um cesto, desceram-me por uma janela ao longo da muralha, e assim escapei das suas mãos”.

 

Paulo clama sobre a nossa vocação: “Tornai-vos os meus imitadores, como eu o sou de Cristo!” - Aqui vemos a opção fundamental que devemos fazer antes do Noviciado, ou fazer e refazer durante toda a vida consagrada.

 

 

+ Karl Josef Romer



[1] Hans Urs Von Balthasar, Mysterium Paschale, 146s. 227-253; C. Pozo, Redención y reparación: Cristologia en la perspectiva del Corazón de Jesús, Bogotá 1982, 608ss; Ziegenaus, Kath. Dogmatik Bd. IV, 316-327.